Bem-vindo ao Discutindo a Ética no Teatro

 

Esse site foi criado pela diretora do Grupo Neelic (2003), Desirée Pessoa, com a proposta de ser um espaço de reflexão sobre as relações que se estabelecem nas artes cênicas a partir da vivência de experiências práticas e  estudos teóricos que envolvem os conceitos de ética e estética. Esta questão está sendo investigada pela diretora e pesquisadora desde 2010 através de observação participante junto ao Grupo Neelic, para sua dissertação de Mestrado na UFRGS - Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Brasil).

Aqui você encontrará imagens, vídeos e textos relacionados à prática nas Artes Cênicas de diversas companhias do mundo todo. Você pode enviar materiais para ajudar a compôr o conteúdo do site, assim como dicas e opiniões. A proposta aqui é de troca de informações, experiências e pontos de vista sobre o tema.

Seja bem-vindo!

 

Desirée Pessoa é atriz, diretora, professora e pesquisadora na área das Artes Cênicas.
Diretora do grupo Neelic - Núcleo de Estudos e Experimentação da Linguagem Cênica.
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFRGS, na linha de Direção Cênica - Bolsista do Programa Reuni.
Graduada pela UFRGS - Habilitação: Licenciatura em Teatro.

 

Fragmento do Mês

Este espaço é destinado a fragmentos de autores que utilizo na pesquisa. Minha proposta é de fazer uma atualização mensal deste conteúdo.

Você pode colaborar mandando fragmentos também, apenas lembre de citar o autor e a referência.

 

Este mês, ficamos com a matéria "Jantar com Edgar Morin", publicada por Juremir Machado da Silva em 9 de agosto de 2011, no blog  do Correio do Povo.



 

Jantar com Edgar Morin

Juremir Machado da Silva

 

Há várias maneiras de conceber uma entrevista.

O sentido da palavra é encontro.

Encontro de diálogo.

Cláudia e eu fomos buscar, como sempre, Edgar Morin no aeroporto Salgado Filho.

Aos 90 anos de idade, ele chegou lépido e faceiro, passo rápido e sorriso franco.

Trouxe-me um romance filandês traduzido para o francês: “Purge”, de Sofi Oksanen.

Fomos para o hotel com ele tagarelando.

No caminho, recebeu uma ligação da nova “petite amie” (namorada, companheira), a marroquina Sabah Aboussalan, socióloga, especialista das cidades, interessada no “democracia e orçamento participativos” de Porto Alegre, que ficou no Rio de Janeiro.

Terminou a ligação romanticamente com uma palavrinha em português:

– Se ficar com “saudades”, me liga durante a noite.

– Eu te amo, meu querido – foi a resposta dela, com uma voz meiga.

Riu. Nós também.

Aí ele contou:

– Conheci Sabbah durante uma viagem ao Marrocos. Foi o começo de uma nova vida quase ao fim dos 80.

Depois de uma leva indecisão sobre um tema complexo: picanha ou camarão, optou por camarões, desde que gigantes , com a garantia de picanha no dia seguinte.

Por comodidade, domingo à noite, fomos a um restaurante de shopping center.

Erro fatal. Comida servida em prato quadrado.

É sempre ruim e afetada.

Grosso modo, para meu paladar, e da maioria dos franceses, só há cinco lugares onde se come realmente muito bem em Porto Alegre: Barranco, Gambrinus, Copacabana, Cachaçaria e Calamares. O resto é prato quadrado e comidinha enfeitada.

A moda é risoto, uma coisa parecida com vômito, sem gosto e melequenta.

Uma gororoba.

Morin quis tomar um cálice de vinho.

– brasileiro ou chileno?

– Chileno não. Está muito industrializado. Antes, era possível tomar um bom vinho chileno velho de 15 anos. Hoje, não. A fama fez mal aos vinhos chilenos. É melhor um argentino. Gosto dos cabernet sauvignon.

– É, a Argentina continua fazendo boa literatura, jogando bom futebol e produzindo bons vinhos – eu disse.

– E fazendo bons filmes – completou Morin. – Adorei O Segredo dos seus olhos.

– O tango também sempre vale a pena – emendou Cláudia.

Pedimos um bom vinho argentino.

– Um tinto com camarão? – provoquei.

– Podemos transgredir – ele riu.

Soltei a clássica pergunta chama conversa:

– E as novidadades da França?

Morin jogou-se para trás rindo…

– Sarkozy vai ser pai, DSK continua f…errado nos Estados Unidos, embora comendo trufas e morando no luxo, os socialistas não têm um bom candidato para as eleições de 2011…

– O candidato dos socialistas era DSK, não?

– Sim, ele era o melhor candidato de esquerda…

– Por ser de direita?

– Isso. Era o que mais tranquilizava os conservadores. Tu lembras do slogan de Mitterrand?

– La force tranquille?

– Sim. DSK, antes dessa história de Nova York, foi fotografado dirigindo um porsche branco. O slogan dos socialistas passou a ser “la porsche tranquille”.

– E a crise na Europa?

– É uma crise, ao mesmo tempo, do capitalismo e dos impasses da esquerda. Precisamos de reformas profundas. O que tem de melhor acontecido é o papel desempenhado pela internet, as redes sociais, no  mundo árabe muçulmano. O autoritarismo está sendo desmontado. Mas vai levar tempo para se chegar a uma democracia verdadeira. A França, quando derrubou o Antigo Regime, passou por uma República, pelo Terror, por Bonaparte, pela Restauração, por uma nova revolução, por 1848, pelo pequeno Napoleão, pela Comuna de Paris… É longo.

– Internet é a grande revolução da nossa época?

– Sem dúvida. Representa uma diminuição do poder da mídia tradicional, dá voz a todo mundo, significa um contrapoder, claro que tem excessos, mas o excesso é melhor, num caso desses, do que o silêncio e controle dos donos da mídia. Basta ver o que fez Julian Assange. Ele abriu um rombo no jornalismo tradicional.

– Gosta de Assange?

– Sim, ele é extraordinário. Fez ver que o poder estatal terá de ser mais transparente. Revelou coisas imaginadas, mas poucas vezes trazidas a público. O wikileaks sacudiu a hipocrisia dos segredos de Estado, mostrou a face obscura da diplomacia, escancarou coisas muito sérias escondidas, realçou o poder da internet. É uma revolução, mas gente como Joël de Rosnay havia antecipado muita coisa, alertado para o que viria.

- O senhor conheceu Marshall McLuhan, cujo centenário se comemora neste ano?

- Pessoalmente, não. Mas eu o li. Quem não pensou no seu conceito de aldeia global. Ele radicalizou certas ideias. Foi visto como um visionário. Internet está realizando muito do que ele intuiu ou simplesmente antecipou.

- Os hackers atacaram o site da Sulina e sabotaram as capas do seu livro, A minha esquerda. Que acha disso?

- Gosto de saber que hackers se interessam por meus livros.

- É importante ser de esquerda hoje?

- Eu sou um esquerdista de direita: prezo as liberdades. Mas sei que é preciso revolucionar tudo, reformar tudo, fazer reformas radicais para combater as desigualdades sociais e construir, não o melhor dos mundos, mas um mundo melhor. Temos de evitar a esquerda ressentida e a esquerda dogmática, mas precisamos de uma esquerda tolerante e com sensibilidade para as mudanças imprescindíveis, pois a miséria humana é grande.

- Um dos textos do livro A minha esquerda intitular-se “Se eu fosse candidato…” Pensou em ser?

- Nunca. Quer dizer, salvo deputado no Parlamento Europeu. Mas rapidamente eu descobri que seria mais burocrático do que combativo. É muito ritualizado. Não se tem a palavra quando se quer. Não seria a tribuna para denunciar, refletir ou simplesmente buscar soluções.

- No seu texto, contudo, o senhor diz o que faria se fosse candidato.

- Sim, eu não teria um programa nem faria promessas, mas proporia um caminho que levasse em consideração a ecologia e colocaria no centro das minhas preocupações empregos, salários e aposentadorias. Criaria duas comissões permanentes: uma para se ocupar da inversão do desequilíbrio entre capital e trabalho, que não para de aumentar desde 1990, e outra para enfrentar os excessos, como os altos salários na cúpula, inclusive das empresas privadas e a baixa qualidade de vida nos setores desfavorecidos. Eu me dedicaria profundamente à educacão, sendo que o essencial é ensinar a viver, ensinar a enfrentar os grandes problemas da existência.

– Qual dos países muçulmanos está mais próximo de tornar-se uma verdadeira democracia?

– O Marrocos. Primeiro porque pratica um islamismo moderado. Segundo porque há uma monarquia parlamentar que vai se modernizando. Antes, o rei indicava o primeiro-ministro. Hoje, o primeiro-ministro é o líder do partido mais votado. Em quase todos esses países sacudidos por rebeliões populares, havia ditadores no poder. Não no Marrocos, que evolui muito nos últimos anos. ainda que haja muito a fazer. O Marrocos tem muitas semelhanças com o Brasil: população hospitaleira, aberta, intensa. Os costumes estão cada vez mais tolerantes…

– Pode-se beber vinho no Marrocos?

– Sim, salvo em cerimônias oficiais. Há mesmo pontos de  venda autorizados. O Marracos está cada vez mais aberto em termos de costumes. Meu sonho é viver quatro meses no Marrocos, quatro meses no Brasil (Rio de Janeiro ou Fortaleza), dois meses em Paris e dois meses em viagens por aí. Quero ter um sítio no Marrocos, onde cuidarei de dois burrinhos. Adoro esses animais. Quero ter os meus. É um velho sonho a realizar.

- O senhor tem muitas lembranças dos seus tempos de resistente ao nazismo?

- Lembro-me das imensas dificuldades para sobreviver e da nossa grande vontade de lutar e de alcançar a liberdade. Eu era jovem. Nunca vou esquecer que a filha de André e Clara Malraux passou a ter uma imensa admiração por mim porque eu era capaz de obter, sem dinheiro, alimentos essenciais nos mercados. A ação era feita em grupo. Um camarada pedia ao balconista para buscar algo no fundo, enquanto eu e outro tratávamos de atacar os salsichões.

- Ao ouvi-lo, fiquei pensando em cantores que eu gosto, Charles Trenet, Charles Aznavour, Georges Brassens. Ficou rodando “Folhas mortas” na minha cabeça. A França tem uma tradição de grandes compositores. Outro dia, vimos o filme sobre a vida de Serge Gainsbourg.

- “Folhas mortas” é excepcional. Mas eu gosto muito de “Douce France”…

- E eu de “Ménilmontant” e “Que reste-t-il de nous amours?”

- A arte é que nos faz humanos.

*

No dia seguinte, Morin cumpriu uma agenda de maratonista. Gravou um vídeo do Fronteiras do Pensamento, conversou com alunos e professores do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da PUCRS ( foto de Fernanda Becker).

Deu entrevista coletiva a jornalistas e, à noite, no Salão de Atos da Ufrgs, em pé, durante uma hora e meia, palestrou para uma platéia atenta e seduzida. Ao final, foi aplaudido de pé.

O jantar foi no Barranco: picanha, costelinha de cordeiro, rúcula com alho, palmito e vinho argentino, Cabernet Sauvignon. Morin se soltou como nunca.

Estavámos Cláudia, eu, o editor da Sulina, Luis Gomes, e sua namorada Denise.

Morin falou da sua paixão pela música e pelo cinema. É fã de Biutiful, de Alejandro Iñarritu, de Tarantino e, claro, dos clássicos frances de Renoir, Trauffaut e Carné. Mas é, acima de tudo, fã de Fritz Lang. Embalado pelo papo com Luis Gomes, que é cinéfilo de carteirinha, Morin revelou também o seu lado cantor. Soltou a voz. Cantou o clássico Folha Mortas e muitas outras canções picantes ou revolucionárias dos anos 1930. Destacou a sua paixão por “El Relicario”, de 1914,  de Padilla, Castellví y Oliveros, um sucesso internacional. Memória fantástica, Morin trouxe à tona velhas e belas letras.

– A música tem muita importância na vida?

– A música, o cinema, a literatura, a arte. É pela arte que estabelecemos os mais profundos laços de identificação com os outros. Por vezes, temos de dificuldade de aceitar a diferença real. mas sofremos ou gozamos com um personagem de filme, novela ou romance. A arte nos revela a nós mesmos. Sem a arte, as ciências sociais ficam mutiladas. Romancistas conseguem captar a complexidade, com frequência, melhor do que sociólogos, antropólogos e outros “cientistas” humanos.