Políticas Públicas Brasileiras

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A política cultural brasileira em balanço

Por Blog Acesso

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Historicamente encarado como peça complementar no contexto das políticas governamentais, o setor cultural vem lutando para sair do plano do supérfluo e ganhar a importância que lhe é devida. Um dos fatores que demonstra essa movimentação é o aumento do interesse de estudiosos pelas políticas públicas culturais, que teve início nos anos 80 e tomou novo fôlego nos últimos anos.

A fragilidade e inconsistência das políticas públicas culturais não configura um fato recente isolado, mas remonta aos tempos do Brasil colonial, quando Portugal infligia limitações ao acesso cultural bem como à educação, excluindo de forma arbitrária as culturas africanas e indígenas. Vale ressaltar que o modelo de colonialismo lusitano não se estendeu a toda a América. Os vizinhos espanhóis, por exemplo, ergueram universidades nas terras subjugadas, construindo um modelo específico de dominação.

O cenário nacional só viria a sofrer alguma transformação com a chegada da corte portuguesa ao Brasil, em 1808, num exílio voluntário impulsionado pela invasão francesa às terras de Portugal. O Brasil passou então da condição de colônia iletrada, distanciada do mundo pela escassez e proibição de informação, ao posto de sede do Governo português, onde seria montado um novo império. Naquele momento, a corte precisava criar mecanismos de desenvolvimento físico e intelectual que lhe diminuíssem o infortúnio de estar longe de casa, da “civilização”, e lhe mantivessem o poder régio, medido tanto por suas conquistas quanto pela suntuosidade de seus palácios, tamanho e diversidade de sua biblioteca. No entanto, para garantir a manutenção de sua superioridade e domínio, todo vestígio de cultura e conhecimento desenvolvido permanecia restrito à elite consolidada ao redor do império.

Nesse sentido, ao contrário do que se poderia imaginar, a independência não implementou uma nova visão sobre a cultura. Se Dom Pedro II ficou para a história como patrono da cultura, o fez por interesse particular e não com vistas a ampliar e institucionalizar o acesso público aos bens culturais.

Com o Estado Novo, além de todas as vicissitudes próprias a uma ditadura, veio o esforço de sistematizar a cultura e torná-la emblema do nacionalismo, para melhor controlá-la – o mesmo aconteceria com o golpe militar de 1964. Não à toa, o governo Getúlio Vargas se voltou para o setor, estabelecendo leis e criando instiuições como o IPHAN, originalmente intitulado SPHAN – Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Estabeleciam-se assim sementes de políticas públicas culturais, ainda que de públicas elas não tivessem nada. Segundo o coordenador do Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura (CULT), Albino Rubim, são consideradas políticas públicas apenas aquelas que são discutidas e legitimadas pela sociedade. “É fundamental distinguir políticas estatais de cultura de políticas públicas de cultura, pois estas últimas implicam sempre em políticas negociadas com a sociedade”. Com o que Lia Calabre, pesquisadora chefe do Setor de Estudos de Política Cultural da Fundação Casa de Rui Barbosa, concorda. “Políticas públicas são decisões coletivas, em geral produtos de atividades políticas, que devem envolver diversos agentes com um impacto sobre o conjunto da sociedade, além de ações normativas e alocação de recursos”, diz.

Os ventos só começariam a soprar favoravelmente para o setor cultural durante a chamada Nova República, na década de 80, com a criação do Ministério da Cultura. No entanto, o que poderia sinalizar como um antídoto acabou por detonar novos questionamentos, com a implementação de leis de incentivo à cultura, ativadas por mecanismos de isenção fiscal, que passavam o poder de legitimação da cultura do Estado para a iniciativa privada – tornando o Estado um financiador. Um dos pontos de discussão seria o fato das leis de incentivo terem tomado tamanho vulto que, até hoje, sufocam as tentativas de pensar as políticas públicas de cultura de uma forma mais ampla. Esse período deu início a uma guinada política para o modelo neoliberal.

Se o governo de Fernando Collor sucateou o setor, estabelecendo o caos; coube a Itamar Franco e, posteriormente, a Fernando Henrique Cardoso a tarefa de colocar ordem na casa. Este último tomou a questão ao pé da letra, implementando mecanimos de estabilidade – ainda que essa estabilidade seja discutível –, como a manutenção do mandato de Francisco Weffort à frente do MinC por 8 anos seguidos, um fato inédito para o histórico nacional. “A gestão Fernando Henrique Cardoso implementou uma política de transferência de responsabilidade das decisões sobre a cultura para a iniciativa privada, na medida em que a principal, e quase única, ação do governo foi o fortalecimento da utilização dos mecanismos da Lei Rouanet”, ressalta Lia Cabrale.

Mas a visão sobre a cultura só passaria por uma transformação mais palpável com o governo Lula. Em primeiro lugar, houve uma mudança conceitual e a dimensão sociológica deu lugar à antropológica, como bem lembra a pesquisadora Isaura Botelho no artigo Dimensões da Cultura e Políticas Públicas. Sob essa perspectiva, o conceito de cultura foi ampliado e as políticas culturais passaram a abranger, para além da cultura erudita, as diversas culturas construídas no cotidiano, antes alijadas desse processo, como a africana, a indígena e a popular. “A cultura se produz através da interação social dos indivíduos, que elaboram seus modos de pensar e sentir, constroem seus valores, manejam suas identidades e diferenças e estabelecem suas rotinas”, afirma Isaura Botelho.

Lia Cabrale acredita que o País esteja vivendo um primeiro momento de construção de políticas públicas de cultura em bases democráticas. “Isso significa a construção de canais de diálogo e de participação entre o governo e a sociedade civil. Significa, também, o investimento em pesquisas que permitam aos gestores públicos de cultura conhecer e atuar de forma mais eficiente. O Estado não produz os bens culturais, mas deve criar condições para que isso ocorra, deve fornecer os meios para que essa produção dos mais variados segmentos sociais floresça, circule e dialogue”, explica.

Segundo a tese de Albino Rubim, a história das políticas públicas culturais brasileiras é perpassada por três eixos: ausência, autoritarismo e instabilidade. A ausência de políticas públicas é percebida desde o Brasil colonial, com a inexistência ou lacuna de políticas; o autoritarismo aparece nos períodos em que o “Estado assume um papel mais ativo e, por conseguinte, enfrenta a tradição de ausência”, além de ser evidenciado por uma “estrutura desigual e elitista”; e a instabilidade seria a soma da ausência com o autoritarismo, representada por fatores como “fragilidade organizacional, ausência de políticas mais permanentes, descontinuidades administrativas e agressões em situações autoritárias, entre outras”.

Assim como Rubim, Botelho e Cabrale, outros pesquisadores têm se dedicado a estudar as políticas públicas culturais, tema que ganhou uma maior visibilidade nos últimos quatro anos. O crescimento do interesse pela questão tem como origem um conjunto de fatores que remontam, em caráter internacional, ao início na década de 1970. A Unesco produziu uma série de estudos sobre a  política cultural implementada em diversos países e surgiram também pesquisas sobre a economia da cultura. No Brasil, a criação da Lei Sarney, que foi substituída pela Lei Rouanet mais adiante, contribuiu para o processo de  profissionalização de algumas atividades dentro do campo da produção cultural, o que resultou, inclusive, na criação de novos cursos de graduação na área. “O que assistimos nos  últimos anos é o amadurecimento de um lento processo iniciado há algumas décadas. Mas é bom atentar para a influência das discussões internacionais sobre diversidade cultural, propriedade intelectual e a economia da cultura no âmbito na Organização Mundial de Comércio como contribuição significativa para o aumento de tal interesse”, explica Cabrale. O próprio setor coordenado pela pesquisadora Lia Cabrale – Setor de Estudos de Política Cultural da Fundação Casa de Rui Barbosa – faz parte desse movimento de pensar as dimensões culturais brasileiras. Criada em 2002, por iniciativa do cientista político Mário Machado, a área desenvolve linhas de estudo e realiza, anualmente, um seminário que reúne pesquisadores de diversas partes do País, vinculados a universidade e a instituições de pesquisa. O setor também trabalha, em conjunto com o IBGE, na elaboração do suplemento de cultura da Pesquisa Municipal – MUNIC, e na contrução de indicadores de cultura.

Ainda que o conceito de cultura tenha sido ampliado e que os olhos estejam voltados para o tema, governos, intelectuais e sociedade terão pela frente o desafio de promover e dar continuidade ao debate sobre as políticas públicas, assim como alçá-las do discurso à consolidação efetiva. Do contrário, essas políticas continuarão sendo tratadas como acessórias, limitadas a mandatos e interesses de ocasião. Como salienta Rubim, precisamos de políticas “que exibam continuidade independente dos governos no poder, porque alicerçadas em interesses estratégicos pactuados socialmente”.

 

Priscila Fernandes/Boletim da Democratização Cultural